quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Para Juan Martín Velasco, há uma atualidade da mística numa época de eclipse cultural e social de Deus e de profunda e massiva crise das religiões

A mística e o mistério hoje

Para Juan Martín Velasco, há uma atualidade da mística numa época de eclipse cultural e social de Deus e de profunda e massiva crise das religiões estabelecidas. Uma atualidade originada pela sede de experiência espiritual de que muitas pessoas padecem numa cultura instalada na imanência

Por: Moisés Sbardelotto | Tradução de Benno Dischinger

As experiências místicas remetem às experiências do sujeito. Mas também são “experiências singulares que se destacam porque superam o modo de relação sujeito/objeto vigente no resto das experiências humanas”. E todos esses aspectos “remetem, como sua raiz, a algo mais fundamental que outorga a todas essas experiências seu verdadeiro significado. É a referência a um termo, o dado na experiência, seu conteúdo, que os sujeitos designam com os mais variados nomes: o Todo, o Absoluto, o Divino, o Tao, Brama, Deus, o Espírito”. Para Juan Martín Velasco, professor emérito de Fenomenologia da Religião da Universidade Pontifícia de Salamanca e da Faculdade de Teologia San Dámaso, na Espanha, para entender o fenômeno religioso é preciso entender o “mistério”, aquela “realidade anterior e superior – um supra e um prius – presente em todos os sistemas religiosos e que pode inclusive manifestar-se ao homem sob formas não religiosas”.
Esse mistério também foi “entendido” por Teresa de Jesus, que marcou a história do pensamento – “adiantada à experiência moderna da subjetividade” –, a história da Igreja – “como promotora de uma reforma que serviu de modelo à renovação católica da vida religiosa” – e até a história em si – “pela influência social que sua forma revolucionária de viver a condição feminina exerceu”, afirma, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Inspirado em Teresa, Velasco questiona os cristãos de hoje: “Saberemos interpretar, como Igrejas, o sinal dos tempos que supõe, por uma parte, o abandono de tantos de seus membros, e, por outra, a sede de experiência, o desejo de transcendência, o interesse pela mística, a busca do espiritual que manifestam grupos cada vez mais importantes e variados de pessoas?”. Mas oferece uma resposta confiante: “Místicos hoje? Estou certo que sim. Místicos enquanto existam seres humanos, embora provavelmente sob formas tão variadas como eles e os tempos em que lhes caiba viver”.
Juan Martín Velasco é professor emérito de Fenomenologia da Religião da Universidade Pontifícia de Salamanca, em Madri e da Faculdade de Teologia San Dámaso, especialista em temas relacionados à mística. É doutor em filosofia pela Universidad Católica de Louvain, na Bélgica. Foi reitor do Seminário de Madri (1977-1987) e diretor do Instituto Superior de Pastoral da Universidade Pontifícia de Salamanca durante 16 anos. Em português, publicou Doze místicos cristãos (Ed. Vozes, 2003) e A experiência cristã de Deus (Ed. Paulinas, 1994). Dentre suas outras obras, destacamos El fenómeno místico (Ed. Trotta, 1999) e Introducción a la fenomenología de la religión (Ed. Trotta, 2006).
Confira a entrevista.

IHU On-Line – O que é mística para o senhor? Como a interpreta no contexto contemporâneo?
Juan Martín Velasco – Os elementos visíveis do fenômeno místico remetem, como elemento central do mesmo, às experiências do sujeito. São experiências singulares que se destacam porque superam o modo de relação sujeito/objeto vigente no resto das experiências humanas. Elas produzem ou comportam com frequência estados alterados de consciência; vão acompanhadas de profundas comoções afetivas; e levam consigo um alto índice de referência à realidade, o qual produz no sujeito a segurança de estar com o verdadeiramente real.
Mas todos estes aspectos remetem, como sua raiz, a algo mais fundamental que outorga a todas essas experiências seu verdadeiro significado. É a referência a um termo, o dado na experiência, seu conteúdo, que os sujeitos designam com os mais variados nomes: o Todo, o Absoluto, o Divino, o Tao, Brama, Deus, o Espírito. Uma realidade que comporta em todos os casos e sob essa enorme variedade de nomes uma série de traços originais que conferem sua peculiaridade última à experiência pela qual o sujeito entra em contato com ela. Qual é essa realidade?
Se nos perguntássemos por essa realidade somente a partir dos testemunhos da tradição mística cristã teríamos que identificá-la com Deus, sob a forma de Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, que se nos dá como Espírito vivificante. Mas a presença de experiências de tal tipo em tradições religiosas que desconhecem essa forma de identificação, que não dispõem de uma representação para ela em termos propriamente teístas, ou inclusive carecem de toda representação para a realidade à qual remetem, força o estudo comparado das experiências místicas a buscar uma categoria para a identificação dessa realidade mais ampla do que aquela que constitui a representação cristã de Deus. Em nossa maneira de entender o fenômeno religioso essa categoria está resumida no termo “mistério”. Com ela nos referimos à realidade anterior e superior – um supra e um prius – presente em todos os sistemas religiosos e que pode inclusive manifestar-se ao homem sob formas não religiosas, como sucede em algumas formas de espiritualidade à margem das religiosas nas sociedades submetidas a uma forte secularização e a uma aguda crise das religiões tradicionais.
A leitura das referências religiosas à realidade significada com essa categoria nos símbolos, nas orações e nas representações conceituais das teologias nos tem levado a descobrir alguns poucos traços comuns a todas essas representações, configurações e concepções do “além” absoluto ao qual remetem os diferentes elementos de todos os sistemas religiosos. Tais traços são: a absoluta transcendência, expressa simbolicamente em sua condição de invisível, em sua total “outridade” em relação com todo o mundano, em sua superioridade absoluta e, sobretudo, no fato de que o homem só pode entrar em contato com ela transcendendo as possibilidades de todas as suas faculdades e passando pela noite ou negação e superação de todas elas.
Podemos concluir que a experiência dos místicos, cume da experiência religiosa, remete como ao seu conteúdo, seu termo e sua raiz, à Presença originante da mais absoluta transcendência no mais íntimo da realidade e da própria pessoa, que estabelece com ela uma relação inteiramente original.
Se tivesse que resumir num só traço o peculiar da experiência mística em relação com o comum das experiências religiosas, diria que se trata de uma experiência imediata por contato amoroso com a realidade experienciada. “Imediata”, porque isso é justamente o que o místico anelou ao longo de todo o processo: “Descobre tua presença / e mate-me tua vista e formosura...”. Daí que São João da Cruz, por exemplo, fale de sua experiência como “toques substanciais de divina união entre a alma e Deus”; “toque somente da divindade na alma, sem forma nem figura alguma intelectual nem imaginária” . Porém com uma imediatez que, dada a absoluta transcendência da Presença com a qual o sujeito entra em contato, não pode ser mais do que “imediatez imediata”, porém mediada na própria alma convertida em meio da experiência da união.

IHU On-Line – No contexto das sociedades contemporâneas, especialmente nas crises econômicas e sociais dos últimos anos, ainda há espaço para a experiência mística? Qual a atualidade da mística?
Juan Martín Velasco – Alguns traços da atual situação parecem tornar nossa época refratária a qualquer forma de mística. Pensemos na grave crise das religiões estabelecidas, o crescimento da descrença e a crise de Deus, que poderia estar afetando em boa medida não poucas pessoas que creem. Sem embargo, não faltam indícios da aparição em sintomas às vezes ambíguos, de profundas necessidades humanas que deixam insatisfeita a cultura contemporânea somente científico-técnica e centrada no econômico como valor supremo. Disso dá conta a proliferação de novos movimentos religiosos e, sobretudo, o aparecimento de numerosas formas de busca espiritual com manifestações que contém não poucos traços, pelo menos no nível psicológico das experiências que suscitam, comuns com os que têm tornado presentes as tradições místicas. Em não poucos casos, alguns de seus representantes identificam como místicas suas próprias experiências e não receiam identificar-se a si mesmos como místicos, isso sim, sui generis.
Isso faz com que, se em outras épocas o problema mais importante para os estudiosos da mística era justificar a existência do objeto de seu estudo, o principal problema para eles agora é pôr ordem na exuberante floração de fenômenos que recebem esse nome e em discernir entre as formas religiosas e não religiosas de mística e, em nosso caso, sublinhar o que tem de peculiar a mística cristã.
Mas, a situação atual abre outro campo importante à atenção dos estudiosos da mística. Os místicos têm refletido ao longo da história as situações históricas em que viviam. Os de nossa época não são uma exceção. Assim, o “eclipse de Deus”, seu obscurecimento social e cultural, parece haver influído na agudização – para os grandes místicos de nosso tempo: Teresa de Lisieux, Dietrich Bonhoeffer , Teresa de Calcutá e outros – da passagem pela noite que toda verdadeira mística comporta.
Por outra parte, a sucessão de catástrofes humanitárias ao longo do século XX e sua continuação em nossos dias, na injustiça generalizada que condena massas de pessoas a formas desumanas de vida e a uma morte prematura, fizeram reaparecer os acentos proféticos em não poucos dos místicos atuais. Surgiu assim a mística de olhos abertos à injustiça e ao sofrimento que comporta, à mística de compaixão por suas vítimas, representada pela espiritualidade surgida no seio da teologia da libertação, com Madre Teresa de Calcutá, Simone Weil, Etty Hillesum e tantos outros menos conhecidos.
Assim, a situação de pluralismo religioso provocada pelo acesso à consciência planetária e o fato da globalização levou não poucos místicos cristãos: Thomas Merton, W. Johnston, entre outros muitos, a prestarem atenção às místicas presentes em outras tradições, sobretudo orientais, e a entabular com elas um diálogo “intrarreligioso” (R. Panikkar) no nível mais profundo da vida espiritual. Por último, talvez a situação atual de evidente crise do sujeito, de perigo de desumanização para os humanos, explique a aparição de estudos que começam a destacar a relação entre mística e humanismo e a inestimável contribuição à causa do homem que poderia supor a vida mística encarnada em sujeitos atentos à atual situação e sensíveis às oportunidades e aos perigos que comportam para o humano.

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