quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

O Calvário e a Missa – Arcebispo Fulton J.Sheen: Consagração


Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?
(São Mateus 27,46)

Eis a quarta palavra da Consagração da Missa do Calvário. As três primeiras palavras foram dirigidas aos homens. A quarta, porém, foi dirigida a Deus. Estamos agora na última fase do drama da Paixão. Na quarta Palavra, e em todo o Universo, só existem apenas Deus e Jesus. Esta é a hora das trevas.

Subitamente, o silêncio dessa escuridão é quebrado por um grito – tão terrível e tão inesquecível que até aqueles que não compreenderam a língua em que foi expresso hão de recordar-se sempre do tom estranho em que foi proferido: “Eli, Eli, lamma Sabcthany”.

Sim, embora alguns não pudessem compreender essas palavras da língua hebraica, o tom em que foram ditas não mais lhes esqueceu em toda a sua vida.

As trevas que cobriam a terra naquele momento representam apenas o símbolo exterior da noite escura da alma. O sol pode esconder a sua face perante o terrível crime dos deicidas, mas a verdadeira razão da noite que se estendeu sobre a terra foi a sombra da Cruz que se erguia no Calvário.

Toda a criação ficou imersa nas trevas da dor.

Qual foi, todavia, a razão do grito que partiu da escuridão?
Meu Deus, Meu Deus, por que Me abandonastes?”

Esse foi o grito de espanto para o pecado, em que o homem abandonou Deus, em que a criatura esquece o Criador, em que a flor despreza o sol que lhe deu força e beleza. O pecado é uma separação, um divórcio da união com Deus, e do qual derivam todos os divórcios. Desde que Jesus veio à terra para remir os homens dos seus pecados, é certo que Ele sabia que havia de sentir esse abandono, esse apartamento, esse divórcio.

Ele sentiu-o, antes de mais, no íntimo da Sua alma, tal como a base da montanha, se fosse consciente, sentiria o abandono do sol quando uma nuvem descesse sobre ela, embora os seus cumes se conservassem radiosos, banhados de luz.

Não havia sombra de pecado na alma de Jesus, embora Ele quisesse sentir os efeitos do pecado, e a terrível sensação de isolamento e solidão – a solidão do afastamento de Deus.

Renunciando à divina consolação que poderia pertencer-Lhe, Ele quis mergulhar na tremenda solidão da alma que se extraviou de Deus pelo pecado, para expiar a solidão do ateu que nega a existência de Deus e deposita a sua fé nas coisas terrenas, a dor do coração despedaçado de todos os pecadores que sentem a amargura da ausência do seu Criador.

Jesus foi até ao ponto de remir todos aqueles que não crêem e que, na tristeza e na miséria, exclamam, blasfemando: “Por que é que a morte levou tal pessoa?”, “Por que é que perdi aos meus bens?”; “Porque é que hei de sofrer”.

O “Porquê” que Jesus dirigiu a Seu Pai é uma expiação que abrange os “porquês” soltados por aqueles que blasfemam.

Para melhor revelar a sensação de tal abandono, Jesus exteriorizou-o. Porque o homem se apartara de Deus, Ele permitiu que o Seu sangue se separasse do Seu Corpo. O pecado entrara no sangue do homem e, como se os pecados do mundo recaíssem sobre Ele, Jesus deixou derramar o Seu precioso sangue, do cálice do Seu Corpo. Quase que podemos ouvi-Lo dizer:

Pai, este é o Meu Corpo, este é o Meu Sangue. Eles estão separados um do outro, tal como a humanidade se separou de Ti. Esta é a Consagração da Minha Cruz”.

O que aconteceu então no Calvário acontece agora na Missa. Com uma diferença: Na Cruz, o Salvador estava só e, na Missa, está conosco. Nosso Senhor, agora, está no céu, à mão direita de Seu Pai, intercedendo por nós. Já não pode, portanto, sofrer na Sua natureza humana.

Como pode, pois, a Missa ser a renovação do drama da Cruz? Como é que Cristo pode renovar o drama da Cruz?

Ele não pode, realmente, voltar a padecer na Sua natureza, porque está no céu, gozando a divina bem-aventurança, mas pode ainda sofrer nas nossas naturezas humanas.

Ele não pode, de fato, reviver o Calvário no Seu Corpo físico, mas pode renovar os Seus sofrimentos no Seu Corpo Místico que é a Igreja.

O sacrifício da Cruz pode ser renovado, contanto que nós Lhe façamos a oferta do nosso corpo e do nosso sangue, em toda a plenitude. Jesus pode também oferecer-Se novamente a Seu Pai Celestial, pela redenção do Seu Corpo Místico – a Igreja.

Cristo anda no mundo juntando as almas que desejam ser outras tantos Cristos. Para que nos nossos sacrifícios, as nossas tristezas, os nossos calvários, as nossas crucificações, não fiquem isoladas, desunidas, a Igreja reúne-os, junta-os, e o agrupamento, a massa de todos esses sacrifícios humanos reúne-se ao grande sacrifício de Cristo na Cruz, durante a Missa.

Quando assistimos ao Santo Sacrifício da Missa, não somos precisamente apenas criaturas terrenas, nem indivíduos solitários, mas sim parcelas vivas de uma grande ordem espiritual, na qual o Infinito penetra e envolve o finito, e o Eterno penetra no ser temporário e passageiro, e o Espiritual reveste a materialidade.

À face de Deus nada existe sobre a terra de mais solene e que mais respeito infunda do que o momento da Consagração, pois a Missa não é uma oração, nem um hino. – é um Ato Divino com o qual entramos em contato num dado momento do tempo.

A rádio pode oferecer-nos uma ilustração imperfeita, um esboço vago do que acabamos de exprimir. A Missa é um Ato único, divino, singular, com o qual entramos em contato todas as vezes que ela se celebra.

Quando a face da medalha ou da moeda são gravadas, ou cunhadas, qualquer desses objetos é a representação visível de uma idéia espiritual que existiu no espírito do artista. Do original podem fazer-se reproduções inúmeras, desde que em cada peça de metal se grave ou reproduza o original.


Na missa dá-se um fato semelhante. O modelo ou padrão é o Sacrifício de Cristo no Calvário, renovado nas almas que entraram em contato com Ele, no momento da Consagração. A respeito, porém, da multiplicidade da Missa, o Sacrifício é apenas um, e sempre o mesmo. A Missa é a comunicação do Sacrifício do Calvário, sob as espécies de pão e de vinho.

Também nós estamos no altar sob essas aparências, pois ambas representam o alimento da vida. Oferecendo, pois, aquilo que nos dá vida, oferecemo-nos, simbolicamente a nós próprios. Além disso, para se transformar em pão, o grão tem de ser moído, e as uvas têm de ser esmagadas, para se transformarem em vinho e, assim, representam os Cristãos, que são chamados a sofrer com Cristo, para que um dia possam também alcançar o Reino dos céus.

O momento da consagração da Missa que nos aproxima de Nosso Senhor equivale às palavras que Jesus pronunciou: “Tu Maria, vós, João, Pedro e André, dai-Me o vosso corpo, dai-Me o vosso sangue, dai-Me todo o vosso ser. Eu não posso sofrer mais. Passei por todos os padecimentos da Cruz, esgotei todos os sofrimentos que o Meu Corpo físico podia suportar, mas não preenchi a medida dos tormentos necessários ao Meu Corpo Místico, do qual vós fazeis parte. A Missa é o momento em que cada um de vós pode escutar literalmente a minha exortação: ‘Toma a tua cruz e segue-Me’”.

Do alto da Cruz, Nosso Senhor já olhava para todos aqueles que haviam de vir, para todos nós, esperando que algum dia nos entregássemos a Ele no momento da consagração. Assistindo à Santa Missa, realizamos, portanto, a esperança que antecipadamente Jesus pôs em nós.

Quando chega o momento da consagração, em obediência às palavras de Deus Nosso Senhor, “Fazei isto em memória de Mim”, o sacerdote toma o pão e diz: “Este é o Meu corpo”; depois, sobre o cálice que contém o vinho, acrescenta: “Este é o Meu sangue do novo e eterno Testamento”. A consagração do pão e do vinho é feita separadamente, como representação da separação do corpo e do sangue; tal como sucedeu na crucificação, o drama do Calvário repete-se sobre o altar.

Cristo não está, porém, sozinho no nosso altar, pois nós estamos com Ele. Daí o duplo sentido da palavra da consagração que, em primeiro lugar, significam: “Este é o Corpo de Cristo; este é o Sangue de Cristo”. O segundo significado é: “Este é o meu corpo, este é o meu sangue”.

E é esta a finalidade da vida! Reunirmo-nos em união com Cristo, aplicar os Seus méritos às nossas almas, imitando-O em todas as coisas, e até na Sua própria morte sobre a Cruz.

A consagração que Jesus fez no Calvário é repetida por cada um de nós quando assistimos à Santa Missa.

Não existe algo de mais trágico no mundo do que a dor sofrida em vão. Quanto sofrimento existe nos hospitais, entre os pobres e os abandonados, e quantos desses sofrimentos são perdidos! E porquê?
Porque muitas almas, abandonadas, crucificadas, não dizem, unidas a Nosso Senhor, no momento da consagração: “Este é o meu corpo. Tomai-O”.

Nenhum padecimento seria desperdiçado, vão, se todos aqueles que sofrem, dissessem nesses momentos:

Meu Deus, entrego-me nas Vossas mãos. Toma o meu corpo, o meu sangue, a minha alma, a minha vontade, a minha energia, a minha força, os meus bens, a minha saúde. Toma tudo o que eu sou e possuo, pois eu me consagro inteiramente a Vós e em união conVosco, para que o Pai Celestial veja nessa dádiva o Vosso bem-amado Filho.

Àquele em quem Ele pôs todas as Suas complacências. Transmuda o pobre pão da minha vida na Vossa vida divina; transforma o vinho da minha vida desperdiçada no Vosso divino espírito; une o meu coração despedaçado ao Vosso coração; transforma a minha cruz num crucifixo.


Não deixes que a minha dor e o meu abandono se percam, junta os seus fragmentos e, tal como a gota de água é incorporada no vinho, durante o ofertório da missa, deixa que a minha vida se incorpore na Vossa.


Deixa que a minha pequena cruz se reúna à Vossa grande Cruz, para que eu possa obter as alegrias da felicidade eterna, em união conVosco!

Consagra as provações da minha existência, pois elas não serão compensadas, senão por meio da minha união conVosco. Transubstancia-me, tal como o pão que é agora o Vosso corpo, e o vinho que é agora o Vosso sangue, e eu serei inteiramente Vosso.

Não me importa que as aparências permaneçam, tal como sucede ao pão e ao vinho, e que aos olhos da terra eu pareça o mesmo que era antes. A minha permanência no mundo, os meus deveres habituais, o meu trabalho, a minha família – tudo isso representa as espécies da minha vida que continuam inalteradas.

A substância da minha vida, porém, a sua essência, - a minha alma, a minha vontade, o meu espírito, o meu coração – transubstancia-os, transforma-os inteiramente no Vosso serviço, para que todo o meu ser possa saber e sentir toda a doçura do amor de Cristo”. Amém.

O Calvário e a Missa – Arcebispo Fulton J.Sheen: Consagração
fonte: A grande guerra